sábado, 17 de setembro de 2016

Comunidade



 Por José Combim

O amor cristão dirige-se às pessoas e também às comunidades. O seu objeto é o “tu”, mas também os “nós”. A comunidade é mais do que a soma dos indivíduos. É uma rede de amores entrecruzados, reunidos em função de um bem comum. Amando a comunidade, presta-se serviço a todos. Pois a existência humana é necessariamente comunitária. Quase todos os bens importantes são adquiridos comunitariamente.


A cultura atual é destruidora de comunidades para substitui-las por instituições formais de consumidores e de produtores, que criam uma coletivização da vida sem comunidade – o que resulta em permanente frustração. Ai a nação torna-se uma entidade de polícia, onde a economia submete os trabalhadores à condição de produtos e consumidores. Não há mais nada que seja gratuito. A vida coletiva está determinada pelo dinheiro. Somente os pobres escapam porque não tem dinheiro e vivem numa economia informal – dessa maneira salvam os valores comunitários. Entre os pobres ainda subsiste alguma coisa do espírito comunitário. No meio deles reapareceu novas comunidades. São comunidades formadas por interstícios de uma sociedade regulamentada pelo dinheiro.


Os seres humanos sempre vivem em comunidades. Durante a quase totalidade de sua história, o que uniu as comunidades foram os laços de sangue, e estes permanecem até hoje na sociedade paralela, embora a família esteja muito enfraquecida. Basta lembrar as grandes proporções dos casos em que a família se compões de mãe e dos filhos. Subsistem fragmentos de família que permitem viver, embora com muita dificuldade. Sem nada de família não é possível viver humanamente. A pessoa se transforma em consumidora fechada no seu consumo. A sociedade dominante de hoje não se interessa pelas comunidades, somente pelos consumidores. Mas o consumo não basta para formar uma comunidade: os que compram no mesmo supermercado não formam uma comunidade.


As igrejas também passam a adotar esse modelo. Elas se transformam em agências de consumo de bens religiosos. Os neopentecostais mostraram o caminho: eles oferecem os bens individuais mais cobiçados: saúde, emprego, prosperidade, tudo sem compromisso comunitário. Na igreja católica as paróquias também deixaram de ser comunidades e passaram a ser lugares em que cada um recebe os bens religiosos que deseja, sem compromisso comunitário. A criação do marketing católico veio organizar essa orientação sugerida pela estrutura da sociedade atual.


Todos os que se preocuparam em formar comunidades sabem o quanto isso é difícil hoje – muito mais difícil do que a 20 anos. Tudo na sociedade leva a separar, dissolver os laços de solidariedade e estimular as pessoas a buscar satisfações sozinhas – sem se importar com os outros. A sociedade incentiva a se salvar individualmente.

Outra dificuldade é a de achar lideranças, pessoas que estejam dispostas a formar, assumir responsabilidades coletiva, dirigir, manter unidas as comunidades. Todos sabem como é difícil achar tais pessoas nos assentamentos, nos bairros, nas favelas. Muitos têm na mente o modelo de liderança criados pelos políticos. O chefão tem os seus cabos eleitorais, os seus capangas, que lhes não devotamente dedicados – porque ele lhe oferece, além de proteção de um homem forte, uma certa socialização. É a prática do clientelismo. Há tendências muito fortes para se formar caciques – no mau sentido da palavra, e não dirigentes de comunidades, pessoas que busquem na sua clientela uma força política, uma vantagem pessoal e não o bem e a unidade de todos.


Quando aparecem lideranças verdadeiras, é preciso multiplicar ações de graças, porque são pérolas preciosas. A estrutura da igreja católica não favorece o surgimento de tais lideranças. O sacerdote, pela sua posição social, pelo monopólio de todos os poderes, impede a existência dessas lideranças – e o aparecimento de pessoas que possam assumir responsabilidades. O padre busca auxiliares para aplicar os planos e as decisões tomadas por ele. Por isso as comunidades eclesiais de base prosperaram, sobretudo lá onde não havia sacerdote ou onde ele aparecia de vez em quando. Para que a existência do padre seja compatível com uma comunidade é preciso que ele tenha a virtude heroica de D. Antônio Fragoso – que ficava calado, escondido no canto da sala, para não influir nas deliberações. Não ocupava muito espaço, o que permitiu que leigos pudessem liderar.

O cristianismo não existe sem comunidade. O que as constitui está resumido no capitulo 18 de São Mateus. Em todas as comunidades humanas espontaneamente aparece uma escala de valores – alguns são mais importantes, outros menos. O que é cristão é a inversão dessa escala. Nas comunidades cristãs também aparecem classificações e escala de valores, mas o superior, é inferior, e o inferior é o superior.  


O grande obstáculo que limitou o desenvolvimento das comunidades cristãs, surgiu quando a igreja foi adotada como religião oficial do império. Desde esse momento, os bispos passaram a ser tratados como privilegiados e postos em níveis cada vez mais altos. Foram considerados como iguais aos governadores. Daí derivou a separação entre o clero e o povo, o que tornou impossível uma verdadeira comunidade. O sacerdote nuca mais será igual aos outros – embora sempre tenha existidos sacerdotes e bispos que se esforçaram para ser iguais, suscitando a gratidão do seu povo. Mesmo neste caso nunca se chega a uma comunidade – que, por sinal, a teologia do minante proíbe, já que é preciso tornar cada vez mais visível a diferença entre o sacerdote e o leigo. A preocupação, tantas vezes expressa nos últimos 25 anos, pela exteriorização da distância entre o clero e os leigos impede qualquer formação de sérias comunidades. O movimento de comunidades eclesiais de base na América latina – na segunda metade do século XX foi um imenso desafio porque era e inversão de 500 anos de história e o oposto e o oposto do codificado no direito canônico. Missão impossível! O conjunto da estrutura condicional levantou uma barreira intransponível.


O Novo Testamento salienta também outro aspecto da comunidade cristã. Ela é comunidade aberta. Todas as comunidades humanas tendem a fechar-se em si mesmas e a acentuar a separação entre elas e o resto da humanidade. Elas insistem nos seus sinais de identificação. Com o decorrer do tempo vão multiplicando um linguajar próprio que os outros não entendem, sinais de reconhecimento, sinais de reconhecimento, costumes, estilo de convivência, ritos, festas e etc.


Infelizmente com o decorrer dos tempos a igreja católica criou para si um fortíssimo sistema de identidade. Como herança da cristandade, ela constitui uma cultura quase completa. Ser católico passou a ser sinônimo de revestir-se de toda uma cultura imediatamente reconhecível. O que faz reconhecer um católico não é a prática do Evangelho, mas toda uma imensa série de sinais exteriores. A cada ano, a série de sinais de identificação aumenta – como se isso não levasse a uma separação da humanidade a tornar mais difícil a evangelização. Além disso, os católicos em geral têm orgulho dos seus sinais de identificação muito mais do que do evangelho. Mostram seus sinais de identidade como se pretendessem descobrir neles provas de superioridade, o que nos torna muito desagradáveis aos outros.


No entanto, para São Paulo, o que distingue a comunidade cristã é que ela se liberta de todos os sinais que a separam dos outros. A supressão é um símbolo – significa que desaparecem todos os sinais que associam a mensagem de Cristo a uma cultura. Para Paulo não há mais grego ou judeu, escravo ou amo, homem ou mulher. A comunidade está aberta a todos. Essa abertura é que deve ser visível. Ninguém pode sentir-se excluído por causa de sinais culturais.


A medida que a igreja se identifica com uma cultura que não é a dos pobres, exclui-os. Há grande distância entre a cultura dos pobres e dos ricos. Estes recusam-se a ver essa distância, mas todos sabem que ela existe. Pode variar nos diferentes países, mas a cultura dos pobres é sempre diferente da dos ricos. A cultura predominante na igreja católica é a dos ricos – salvo exceções muito marginalizadas pela igreja. É por isso que os pobres são tão poucos nas igrejas. Trata-se de cristãos, mas não participam dos atos oficiais da igreja. A participação dos pobres é insignificante nas missas e noutros atos religiosos que se desenvolvem dentro dos templos. Ainda pode haver alguma participação nas procissões e nas romarias – dependendo da maneira como são organizadas. Se os atos religiosos mostram sinais evidentes da cultura dos ricos, os pobres não participam.


Foi dito que a igreja fez a opção pelos pobres, mas isso não ocorreu. Ela pode ter assumido a defesa dos pobres, e até ter lutado pela libertação deles, mas assim mesmo os pobres não se reconheceram na cultura católica. Eles aceitaram entear em pequenas comunidades feitas de pobres – fora dos templos e da convivência com os católicos ricos – mas é muito raro que entrem numa igreja paroquial, ou numa capela de bairro. A cultura aí existente não é deles.


É possível uma comunidade cristã viver sem cultura alguma? Claro que não. Mas a verdadeira cultura cristã deveria ser a cultura dos pobres. 

Fonte: Do Livro, O Caminho - Ensaios sobre o seguimento de Jesus. 






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