Análise
de Conjuntura[1]
Por José Marcos Silva
Texto
para meditação: Oséias 4,1-6
Ainda
que o contexto da profecia de Oséias se distancie por mais de 2700 anos dos
dias atuais, e tenha sido escrito para o povo de Israel e Judá, mais parece que
foi feito hoje, para o povo brasileiro e aqueles que se identificam como igreja
de Jesus, dada a sua tão semelhante atualização com o nosso contexto. Israel
vivia uma situação de depravação em quase todos os aspectos da vida social,
econômica, política e religiosa (v.2); as consequências de tal depravação
atingia a vida em sua totalidade (v.3); os líderes religiosos importavam-se
mais com o acumulo de bens do que com o ensino da vontade do Senhor (v.4-5) e,
como consequência disso, o povo estava perdido por falta de conhecimento acerca
de Deus (v.6).
Como
já dito, tal conjuntura não está distante da nossa. O texto do presente
capítulo tentará fazer uma análise da atual conjuntura, mesmo que essa não seja
uma tarefa fácil, devido à complexidade da trama conjuntural pela qual vive o
Brasil e o mundo.
Na
esfera global – dentre tantos, alguns fenômenos
são dignos de nota
- Crise migratória, com refugiados de guerras, conflitos étnicos, religiosos e da fome, vagando em busca de lugares onde possam viver com suas famílias, mas, de maneira geral, encontrando fronteiras fechadas. De tempos em tempos, uma cena ganha projeção mundial, como a do pequeno Aylan Kurdi, encontrado morto numa praia da Turquia, quando sua família tentava se salvar da guerra, mas, parece que cenas como essas não são fortes o suficiente para criar a consciência de que a Terra é, para todos/as, uma casa só, fenômeno denominado pelo papa Francisco de “globalização da indiferença”, por ocasião de sua visita à Ilha de Lampedusa, no sul da Itália, em 8 de julho de 2013.
- Desigualdade social, que ganha proporções como nunca houve. Segundo pesquisa da Oxfam, a partir de 2016, a riqueza de 1% da humanidade superará a dos 99% restantes. Em âmbito nacional, o Brasil figura como um dos dez mais ricos do mundo, mas com uma desigualdade comparada à dos países mais miseráveis.
- Crise ecológica, pela primeira vez causada pela forma de vida do Homem. Parece que o modo de vida dos Estados Unidos é a grande meta a ser alcançada, mas se o mundo todo vivesse como os estadunidenses, precisaríamos de 4,5 planetas Terra para dar conta da produção[2]. Isso é inconcebível.
- Crise econômica. O sistema econômico mundial, onde predomina o modelo capitalista, está em crise. Depois de uma crise nas décadas de 1960 e 1970, a globalização foi a estratégia encontrada para transformar o mundo em um hipermercado só, porém, de 2007 até aqui, enxergamos paulatinamente os sinais de enfraquecimento dessa estratégia, com a crise dos Estados Unidos em 2008, que passa a atingir os países emergentes, como o Brasil, já a partir de 2011. Tudo isso indica que não vivemos uma era de mudanças, mas, uma mudança de era.
- A Era Lula foi marcada por uma politica de coalisão com partidos de direita, o que fez o Governo adotar um programa focado na sustentabilidade do poder e da governança, mesmo sofrendo o risco do quase que total abandono de um programa de implementação das reformas de base, como a agrária, a política e a tributária, de maneira que, ao invés de garantir direitos sociais estruturantes, foi garantido o acesso individual ao consumo e, como consequência, aliado a um cenário econômico internacional que favorecia os países emergentes, tivemos a aceleração da economia local, com o crescimento da classe média, momento em que, políticas governamentais importantes fomentaram uma grande diminuição dos índices de pobreza. Dessa forma, pode-se dizer que “gregos e troianos” foram beneficiados, fazendo o Governo Lula terminar seu tempo com invejável popularidade.
- Outra marca importante dessa época, foi o esfriamento de movimentos sociais. Por um lado, expressiva parcela de líderes populares deixava suas cadeiras nos movimentos sociais para ocuparem espaços governamentais, ao lado de atores de oposição, uma vez que um governo de esquerda adotava uma política econômica de direita, de maneira que, nas cadeiras de poder sujeitos como Frei Betto e Henrique Meirelles faziam parte da teia governamental. Isso só poderia gerar dois resultados: rupturas ou alianças perigosas. As duas coisas aconteceram. Concomitantemente, os próprios movimentos sociais organizados, agora se sentindo representados pelas vitórias nas urnas, experimentam um tempo de esfriamento em seu papel de fiscalização e pressão popular. Com o passar do tempo, essa parcial apatia dará lugar a um descontentamento generalizado, pois, gradativamente, fica cada vez mais clara a percepção de que o governo não implementava as reformas de base, bandeira principal de sua eleição.
- O primeiro mandado de Dilma Rousseff é assolado por intempéries substanciais. O cenário econômico internacional trazia sérios abalos para as economias emergentes e o Brasil não ficaria imune. A antiga “marolinha” do Governo Lula se transformava num “tsunami”. Como consequência, observa-se a insatisfação quase que generalizada da classe média, tanto a antiga, quanto a nova.
- A inconstância quanto à linha estratégica governamental, aliada à dificuldade de diálogo político, fragilizou o Governo Dilma. Se, por um lado, sua política internacional buscava o fortalecimento das economias emergentes e locais os BRICS[5] e o MERCOSUL, por outro, precisava se moldar às pressões do capital e da política econômica neoliberal.
- Como nunca antes, casos de corrupção ligados a empresas de grande vulto e políticos de alto escalão passaram a ser investigados e expostos na grande mídia. Está longe de uma postura imparcial[6], jogou luzes de maneira seletiva, ora na esquerda, ora na direita, conforme conveniência. Em meio a um frenesi de incertezas, grande parcela da população, sobretudo jovens, saiu às ruas em protestos generalizados em todo o país, principalmente no mês de junho de 2013, numa evidente reclamação contra a corrupção e a classe política em geral.
- Em 2014 ocorreram as eleições presidenciais e de quase todo o Congresso Nacional, culminando na apertada reeleição de Dilma Rousseff e da eleição do Congresso mais conservador desde o Golpe Militar de 1964. Políticos de direita e de esquerda voltam a ocupar os polos das discussões e é instaurado um processo de impedimento da então empossada Presidente, caso que ganha notoriedade em todo mundo, principalmente pelo fato de que os principais condutores do processo de impedimento figuram como investigados em diversos processos judiciais, principalmente os conduzidos pela chamada Operação Lava Jato. O país se polariza novamente, em duas parcelas da população que saem às ruas, contra e a favor do impedimento da Presidente da República. Tal processo corre banhado em tramas e incertezas, sem que haja nenhum consenso sobre o seu final, bem como sobre a sua lisura.
Na
esfera continental
A
América Latina viveu um período de governos populares e de esquerda o qual
promoveu a chamada “década de ouro” (2002-2012), marcado por expressivo
crescimento econômico e avanços sociais. Segundo o El País, nesse período “os
níveis de pobreza caíram de 44% para 20%, enquanto que os de pobreza extrema
diminuíram de 19,5% para 11,5%, com um aumento considerável das classes médias.
Também houve um aumento notável do gasto público. E isso implicou em inclusão
social. Uma amostra entre 1999 e 2011, segundo a Unesco, o nível de
escolarização inicial passou de 55% a 75%[3].
Mas esse período está chegando ao fim. Na Bolívia, a derrota de Evo
Morales em referendo sobre a reeleição pela terceira vez, a vitória de Macri na
Argentina e, o processo de impedimento de Dilma Rousseff no Brasil, são
marcadores importantes. O Equador e o Peru também passam pela volta de governos
da direita.
A
economia continental teve uma queda vertiginosa, principalmente por causa da
queda dos preços de commodities[4] de 2011 a 2015, em
quase 50%. A queda dos preços de produtos primários continua sendo um grande
problema, uma vez que, desde a época da colonização, a economia continental
permanece altamente dependente da produção e exportação de matéria-prima.
No
Brasil
No
Brasil, o movimento tem sido semelhante ao do continente latino-americano, de
maneira que o governo de centro esquerda do Partido dos Trabalhadores está
vivendo a sua maior crise histórica. Mesmo que estejamos diante de uma
conjuntura complexa, alguns pontos merecem atenção:
Evangélicos
A
população evangélica cresce como em nenhum outro momento histórico, passando de
25% da população brasileira. Tal crescimento é alavancado pelo surgimento de
grandes igrejas de inspiração neopentecostal; pela pulverização de um infinito
número de pequenas igrejas independentes; pela associação entre igreja e mídia,
quando essa passa a ser detentora de espaços midiáticos de todos os setores e
vultos; pela popularização do movimento musical gospel e, pelo enfraquecimento
da Igreja Católica no papado de Bento XVI, porém, além desses fatores, pela
apropriação da máquina política.
Nesse
último movimento, ao contrário de se ter como proposta uma diminuição da
corrupção e uma limpeza da classe política, o que se viu foi o contrário, de
maneira que a chamada Bancada Evangélica do Congresso Nacional aliou-se aos
interesses mais conservadores e aos políticos mais questionados, caindo no
descrédito da população e prestando um contratestemunho. Como ponta do iceberg,
o fatídico dia 17 de abril de 2016 entrou para a história quando a Câmara dos
Deputados, ao votar pelo encaminhamento da abertura do processo de impedimento
da Presidente, envergonhou toda a população, contrária e a favor ao
impedimento, com uma clara demonstração de ausência de seriedade ao votar o
pleito, não necessariamente pelo resultado, mas pelo festival de argumentos
espúrios, onde os nomes de Deus e da família foram banalizados. Na manhã do dia
seguinte, um sentimento de nojo tomava conta dos brasileiros em geral, e outro
de vergonha assolava os cristãos, em particular.
Diante do cenário de incertezas, o mundo evangélico nunca precisou tanto de
orientação política. Novas eleições municipais se aproximam e cresce o perigoso
fenômeno conhecido como “voto de cajado”, uma vez que igrejas “fecham” questão
para eleição de políticos que, sob a bandeira da defesa da causa evangélica,
podem se esquecer de que sua missão é de defesa dos interesses da “polis”, em
primeiro plano.
Perguntas
para discussão em grupo
Como
podemos associar as consequências pontuadas no texto bíblico de Oséias 4, 1-6
às do Brasil atual? Como podemos diferenciar a relação entre Igreja e Estado e
entre Fé e Política? Qual a opinião do grupo sobre o “voto do cajado”? Que
importância tem para a Igreja o estudo sobre Política?
[1] O presente texto foi
elaborado com objetivo de assessorar igrejas por ocasião das eleições
municipais de 2016. Se seu conteúdo, total ou parcial, for julgado útil para os
objetivos a que se destina, está autorizada a reprodução, por quaisquer meios,
sem a necessidade de consulta prévia ao autor. Em caso de citação ou
reprodução, pede-se a gentileza ética de citar a autoria. José Marcos da Silva
é Pastor e Presidente da Igreja Batista em Coqueiral e do Instituto Solidare,
ambos sediados na cidade do Recife, Pernambuco, Brasil.
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[2] Fonte: World Resourceslnstitute.
[3] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/27/internacional/1456608633_490106.html, em 16 de julho de 2016.
[4] Matéria-prima que não
precisa de processamento industrial, como soja e petróleo, por exemplos.
[5] Grupo formado por
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que formalizaram acordos
econômicos para fortalecimento mútuo.
[6] Segundo a ONG
Repórteres Sem Fronteiras, em 2010 o Brasil ocupava o 58º lugar no
ranking de liberdade de imprensa, mas em 2016 caiu para o 104º.
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